outubro 28, 2013

Querido Sono,



Sempre vivemos uma relação estranha. Desde sempre você não costumava cumprir seus horários comigo. Prometia e não cumpria. Quantas vezes te esperei, em claro, e você não aparecia. Crueldade isso, sabia? Enquanto te esperava, tantos pensamentos iam e viam, muitas vezes transformando brisas em tempestades, fabricando monstros e construindo diálogos intermináveis que nunca chegaram a acontecer.

Era ainda pior quando você aparecia pra todo mundo, menos pra mim. Eu me sentia como uma criança desobediente que não recebia a visita do Papai Noel. Eu acabava com todos os livros da casa, ouvia toda a programação da rádio até que o Benito de Paula cantasse "Sinal Verde" à meia-noite (era assim que a programação chegava ao fim) e assistia a TV até que ficasse fora do ar. Não tínhamos TV por assinatura naquela época e eu chegava a assistir um programa de vendas do Sílvio Santos chamado Tele Sisan. Olha a que ponto você me fazia chegar, Sono! 

Houve um época em que eu nem queria que você chegasse mesmo. Quando comecei a usar a internet. Ainda discada, conexão horrível.Um fio enorme que eu tinha que ligar na tomada do telefone. Mas tinha o tal do freetel. Acho que era isso mesmo. Um quadrado preto, em que a gente escrevia com letras verde fluorescente do lado esquerdo e a pessoa respondia no lado direito. E a conexão  sempre caía na melhor parte do papo. Sempre.

Mas mesmo com o freetel, uma hora você fazia falta. Muitas vezes, na hora errada. Quase sempre. Quando eu já não mais te esperava, você chegava. Me pegava desprevenida e acabava me seduzindo, mesmo sem eu querer. Outras vezes eu não podia te fazer companhia, não queria te ver nem pintado a outro. E parece que era nessas horas que você mais queria atenção. Lembra da época da dissertação do mestrado? E do nascimento das meninas? Era nessas horas que você fazia questão de chamar minha atenção, como uma criança mimada diante de pais viciados em trabalho. Acho que você precisa de terapia, Sono. 

Já está na hora de crescer. De respeitar regras, horários. Você já está bem grandinho para rebeldias. E já deveríamos ter passado da fase dos conflitos. Não é de bom tom aparecer sem avisar. Você conhece perfeitamente meus horários disponíveis. E não se deixa uma dama esperando. Combinou, apareça. No horário. Sem desculpas esfarrapadas. Não permita que as enxeridas da dona ansiedade ou da senhora preocupação te atrasem. Compromisso é compromisso, Sono. 

Te espero hoje à noite. Na mesma hora e no mesmo local. 

Estamos combinados?

Qualquer coisa, me ligue. Você tem meu telefone.

Um beijo,

Renata.

outubro 16, 2013

Caráter.

Tenho medo do caráter das pessoas.
Será que muda? Será que cria?
Será que o mundo pode enfraquecer o caráter de alguém?
Será que o amor pode fortalecer?
O caráter é relativo?
É possível ter bom caráter com algumas pessoas e nem tão bom com outras?
É possível ter caráter pela metade?
É possível ter caráter por inteiro, o tempo todo?
Posso vender caráter? Mas quem tem, o venderia? Ou doaria?
Mas se alguém doar, corre o risco de ficar sem?
Caráter se ensina? Ou se aprende?
Um apaixonado pode ter bom caráter? E um faminto?
Devo ser mau-caráter com quem é mau-caráter?
O certo é ter bom-caráter ou ser bom-caráter?
Caráter tem a ver com justiça ou com bondade?
E com felicidade?
Caráter acaba? Funciona? Ajuda? Abre? Fecha?
É bom? É caro? É intenso? É hábito?
É consequência?
É de comer?



outubro 09, 2013

Rezando.


Todos os dias, ao acordar, ele se senta na cama. Mesmo ainda deitada, naquele sofrido momento entre o acordar e o acordar de verdade, sinto que ele já acordou e, sentado na cama, reza. Fico pensando para o que e por quem ele reza, pelo que ele agradece. Fico rezando junto, pedindo também para que as preces dele sejam atendidas. Não penso, naquela hora, em pedir nada, além dos pedidos dele. Em um egoísmo reconhecido, sinto que se os pedidos dele forem atendidos, os meus também serão. Sinto que o que o faria feliz também me basta. Como se as felicidades se misturassem e eu já não pudesse mais identificar qual é a felicidade dele e qual é a minha. Talvez seja isso, o amor. Quando as felicidades coincidem, mesmo que a gente não saiba exatamente, o que faz o outro feliz.

Talvez ele não saiba, mas aquela prece também é minha. E a minha fé é alimentada pela fé dele, todos os dias de manhã.